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A MOÇA



Photo by Raphael Lovaski on Unsplash





ANCHIETA MENDESJosé de ANCHIETA de França MENDES, natural de Juazeiro do Norte/CE, autor de Valados de Giz - Romance (2001 - Independente);  Dois dedos de prosa (Contos 2007- Independente);  Alquimia – Romance (2013 - Multifoco);  Bicho Metropolitano (Contos – 2016 - Penalux) - 2º lugar no concurso de Contos Sesc Santo Amaro/SP com o conto Letargia (2003).
Gestor Ambiental Consultor SEMACE/AMAJU Técnico em Segurança do Trabalho.
blog: anchietamendes.blogspot.com.br







A MOÇA

Faltavam dez minutos para as 17 horas, o banco estava vazio, apesar de tanta gente transitar pelo lugar; não precisei correr para sentar nele, apesar de achar-me cansado pelas inúmeras voltas pelo lugar e o vazio do banco era a salvação; então vi que o banco era curto e dividido em duas partes; uma de costas para a outra, e esse detalhe parecia simples e o era para muita gente e para mim também, a questão estava no vazio dele e em pouco tempo em estar ali com um livro há pouco comprado, uma moça sentar-se ao lado, e não a olhei, mas a vi o necessário pelo canto do olho esquerdo e vi os pés calçados em sandálias rasteiras,  as unhas não tão bem feitas e há tempo pintadas de um esmalte suave e de cantos desgastados; consegui erguer o olho sem me virar e percebi a ponta do vestido, era de estampa em flores e de tons também suaves, e nesse momento os olhos nas páginas do livro não entendiam o emaranhado de letras e suas mensagens, sequer o conteúdo quando prometi iniciar a lê-lo ali mesmo antes de ir para casa ou para outro lugar silencioso, mas não passei da primeira página, a moça ao lado não deixava, além da respiração ofegante misturada à minha, e o perfume, e o meu num espaço único, confundível, porque o meu já gasto, além de um pensamento a me assoberbar do por que daquela moça sentar-se ao meu lado quando o banco estava de todo vazio; não sabia a razão, e se soubesse não me interessava porque ela estava ali pelo força dos deuses, de forte impulso do acaso; no local muita gente passava, ninguém sentava no restante do vazio, porque talvez aqueles deuses não quisessem, nem eu ou ela, não sei; só sei desajeitado me encontrava com ânsias de voltar o olhar e os dois olhos vislumbrassem e não só aquele canto do olho esquerdo já cansado e sem mais a vasculhar qualquer que seja parte naquela altura; então o livro sacudido pelas minhas mãos era somente pretexto para se ter para onde olhar, distrair-me o mais que pudesse, sem precisar olhar para a esquerda e me deparar com uma deusa ou uma mulher comum e de aspectos, talvez, de gente humilde e desprovida de medo por estar ali sozinha ao meu lado, não sei por que, se era para apenas por descanso, por impulso, sem pensamento, sem ousadia, simples demais para se sentar em local público, sem se aperceber que ali ao lado havia um homem cheio de pensamentos e quase à deriva por ter ao lado uma mulher de que não se sabe de onde veio e nem para onde vai, a estar ali, agora a buscar celular na bolsa de tiracolo; certamente iria ligar para o namorado, o amante, o pai ou a mãe para vir buscá-la, porque estava sozinha, ao lado de um desconhecido a olhar de rabo do olho, desconfiado e nervoso, com ares de aflito e a se fazer em ler um livro, mas não lia porque ela não deixava, nervoso que estava e não tinha coragem para olhar para ela nem se fosse para apenas enxergá-la de relance, rápido como o pensamento; mas ela não ligou para ninguém, apenas manipulava o aparelho nas redes sociais, a passar rapidamente as fotos, as mensagens, sem se deter em nenhum tipo de foto; coincidência ou não, o celular assemelhava-se ao meu livro sem serventia para o que foi feito, em ambas as partes com suas peculiaridades, mas sem objetivo; o relógio no meu pulso esquerdo mais próximo do corpo da moça seria a forma precisa e de soslaio a vislumbrar melhor a mulher, mas precisava ter cuidado em gesto suave porque o brusco poderia afugentá-la por despertá-la de que havia alguém ao seu lado, e era um homem, cheio de ânsias, de cansaço, ofegante e de suores presos, sem saber o que fazer e pensar, porque pensar era a única forma de existir, pelo menos ali ao lado de uma desconhecida, de não se sabe de onde e para onde, ali ao seu lado em um banco há pouco vazio; por isso ver as horas era preciso como nunca, embora os ponteiros não me interessava, nem o relógio, nem as horas, os minutos; erguer o braço na altura nos meus olhos seria um gesto suave para que ela pensasse que assim seria, sem mais nem menos, com o objetivo das horas, de se saber do tempo, só isso; mas pensei melhor, e olhar as horas naquela altura poderia deixar no ar a ideia de pressa, de compromisso, e eu não tinha compromisso, porque o compromisso seria somente o livro, e o livro para mim não importava mais.... bolas para o livro, bolas para o tempo; o relógio era necessário sim para ver as horas, para quem sabe, e na altura certa ver o perfil,  talvez o rosto da moça, da mulher a estar ao meu lado tão perto, porque o banco era curto, o espaço entre nós era curto, o perfume misturado e a respiração também; não dava mais para esperar, com horas ou sem horas, pretextos ou quereres reais, era preciso olhar de cara; mas antes da tomada de decisão, de mexer-me no banco com a intensão de virar-me, por desculpas quaisquer, a moça se mexeu; cruzou a perna direita sobre a esquerda, repousou as mãos sobre a coxa e parte do joelho para olhar melhor o celular; o olho esquerdo apenas via esses detalhes, mas não percebia claramente o perfil da moça; recolhi o braço e o relógio e desisti; por um tempo diminuto não quis mais olhar e fiz menção de levantar-me e ir embora, sair daquele embaraço, bater pernas por ai com o livro na mão e uma ideia na cabeça: escolher melhor o local certo para sentar e não sonhar demais; pensei, pensei tanto, e nada fiz e fiquei, a espera de uma chance, e quem sabe balbuciar um “oi” tímido e sem outras intenções para acabar de vez com o sofrimento; não fiz nada disso, até por enquanto compenetrado em mim num todo desvairado, arraigado naquele banco como se fosse meu, quão meu de há muito e com a vontade louca de chamar a moça para uma dança naquele salão de piso espelhado, sem a música do momento, fechado aos olhos dos passantes, do passado esporeado pelas mulheres da minha vida, do tanto de sofrimento, dos azares das relações, dos azedumes das convivências e dos dissabores das noites mal vividas; a dança seria a liberdade, a libertação dos anos vividos, das tormentas pelo corpo e alma, das jornadas desenfreadas e de mau gosto por tudo; aquela moça e a dança, e os braços, e o ombro e as coxas seriam outros tempos, outro mundo, outros lugares, outras paragens; seria o futuro no presente de mãos dadas, de lábios entreabertos, dos espantos dos olhares pegos de surpresas, dos tatos suaves em rodopios pelo salão numa simples dança; dançaríamos por um tempo não determinado, por todos os lugares, atropelando os demais, a revelar os nossos sorrisos, o esvoaçar dos cabelos, o espalmar das mãos, os passos bem articulados e os suores pelos dorsos; logo cansei de tanto rodopiar sem erguer-me do banco e sem olhar para o lado; a moça ainda estava lá com o celular na mão e agora o devolvia à bolsa, igualava os joelhos em gestos comedidos, a uni-los como a guardar segredos talvez nunca revelados; em dado momento, por cansar-me de imaginar ou de fingir olhar, joguei as pernas ao longo na intenção de respaldar-me no encosto do banco e fechei os olhos; nesse gesto descuidado, o livro tombou de lado entre nós dois e revelou à moça, certamente curiosa, para ler o título: “um copo de cólera”; senti algo no meu ombro como alguém a roçar-me, e abri os olhos lentos, mas apavorados, e vi o dorso da moça a abaixar-se para buscar o livro tombado depois no chão; antes de me entregar, realmente leu o título, e na volta do corpo, numa lentidão apurada, olhou para mim, com os olhos brilhosos e de tons de amêndoas, sorriu como quem já houvesse lido o livro, e numa voz penosa e jovial, disse: “título interessante”; ajeitei-me no banco e ali vi a deixa de iniciar um diálogo, conhecer aquela moça depois de ver seus olhos tão de perto, dos lábios finos e delgados, de cabelos castanhos a espalhar-se nos ombros, de um vestido a lhe cair bem, de um corpo jovial; era a deixa para cavalgarmos em assuntos do livro, de nos conhecermos aos poucos, para depois levantarmos e andarmos pelo lugar, de irmos, quem sabe, ao cinema, comermos pipoca, tomarmos um sorvete, jogarmos sorrisos à toa, sabermos um do outro, do passado e aventurarmos no futuro, tudo isso numa tarde com cuidados pela noite; mas isso foi tão forte, com a mão da moça estirada para me entregar o livro, um livro abençoado, comprado há pouco, pego na prateleira por saber do título; aquele instante a me parecer um ano e ao mesmo tempo segundos, a querer a se perpetuar por tanto tempo, para sentir os olhos, o aroma da boca, o esvoaçar leve dos cabelos, mas não; ela entregou-me o livro como qualquer objeto e simplesmente ergueu-se e sem se despedir, sem dizer um simples adeus, sem saborear o tempo em que vivemos ali juntos, da dança, do sorvete, das pipocas, foi embora; olhei o relógio, agora de braço livre e leve e vi cravarem os ponteiros as dezessete horas.



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