JEFFERSON ROCHA
Autor e Diretor Teatral. Professor de Teatro do Degase (RJ). Pedagogo. Pós graduado em Psicologia Jurídica. Presidente da Escola de Samba Mirim Inocentes da Caprichosos.
Dormi cedo para acordar bem disposto. A lista de compras já estava pronta desde a noite anterior. Nada poderia ficar esquecido: duas calças sociais, uma calça jeans, duas blusas de gola pólo, uma camisa social de mangas compridas e uma jaqueta que há tempos esperava para comprar. O smartphone já estava selecionado. Era aquele que tinha câmera frontal e fazia um “looping” ( a parte do looping era um exagero e nem sabia qual a finalidade de um celular fazer tamanha peripécia
circense.) Parcelado em três vezes no cartão de crédito. Já era o suficiente!
Na famosa Loja de Departamento, todas as promoções de chocolate (três por nove e noventa) e várias caixas de bombom. Vai que o relaxamento é interrompido feito um coito mal terminado? É preciso estar preparado para um revés.
O perfume anunciado exaustivamente na tevê para o Dia dos Namorados era perfeito para presenteá-la. Um vestido para ela? Se comprar o número atual levaria um grande “passa-fora”, porque quando enfim retornassem as atividades físicas, o número do manequim voltaria aos trinta e oito. Trinta e seis, talvez! Bem, melhor deixar o vestido na vitrine e quando ela pudesse me acompanhar, ela mesmo escolheria o modelo e o número que a fizesse ficar feliz. O relógio já tinha sido escolhido antes da pandemia. Faltava o dinheiro e, quando já se tinha o dinheiro, as Lojas entraram em luto por quase três meses. O pulso, pelo que eu ando observando todas as manhãs, não alterara neste período de isolamento social.
Eu queria ser o primeiro a chegar na porta do Shopping. Por isso, me programei para estar às oito e meia da manhã, mesmo sabendo que só abriria ao meio dia. Mas, e se todos pensassem como eu e resolvessem fazer uma vigília e formar com seus próprios corpos e roupas coloridas o tapete de areia que este ano não será feito pelos devotos religiosos? Melhor chegar às seis da manhã a enfrentar uma multidão às onze, onze e meia.
Decisão tomada, não fiz barulho para não acordá-la. Pela manhã, ela acorda muito indisposta, quase uma “TPM” matinal (que ela não me ouça fazendo esse comentário machista e demodé). Ela não costuma dar “bom dia” antes de ir ao banheiro, fazer suas necessidades matinais, tomar um banho, pentear os longos cabelos e surgir na sala esplendorosa, como se estivesse indo a uma sessão fotográfica para um catálogo de moda. Aí sim, começa o seu dia e, o seu humor, paulatinamente, vai surgindo com a luz do sol das dez horas da manhã. Eu, já sabendo como é todo esse processo, preparo o seu café com leite(novidade da quarentena em “home office”, pois até a primeira quinzena de março, seu café se resumia a um iogurte desnatado e uma maçã, e partia rumo ao escritório de advocacia onde trabalhava há três anos). Agora, na quarentena, om pão com queijo, o café com leite, geleia, suco de laranja, iogurte(a maçã foi esquecida!)e um copo médio com “Toddy” formavam o seu cardápio matinal neste período atípico. Daí, minha dúvida se compro ou não o vestido para presenteá-la no Dia que os corações batem mais fortes e o amor aparece grudadinho com ou sem quarentena.
Levantei, sem fazer barulho, para não incomodar seu sono, e fui tomar um banho. O relógio marcava cinco e quarenta da manhã. Nem quando eu precisava chegar mais cedo ao trabalho para abrir o escritório para o meu chefe, eu levantava neste horário. Se bem que chegar cedo ao escritório era motivo de não me estressar no trânsito e nem pegar engarrafamento na Linha Amarela. Senti uma falta descontrolada no início do isolamento social de não xingar dez palavrões durante a hora e meia de engarrafamento para chegar à Barra da Tijuca, vindo do Méier. Acordar cinco e quarenta, não. Chegar a esse horário, após as baladas e as comemorações da vitória do meu time, ah, isso sim. Muitas vezes. Estou sentindo uma imensa falta da muvuca do Maracanã. De deixar meu carro guardado dentro do estacionamento da UERJ, do buzinaço, da cerveja na esquina da Faculdade. Dos abraços. Das zoações. Cinco e quarenta da manhã para os preparativos de abertura do Shopping Center era de um ineditismo marcante. Uma boa causa! Motivo de me fazer acordar cedo e deixar toda mesa posta e um bilhetinho para ela: “Meu amor, feito com carinho. Me espere para o almoço. O Shopping reabre hoje, ao meio dia. De seu namorido”.
O mundo voltará a normalidade. Que saudades de rever vitrines de lojas, comprar supérfluos, entupir o armário com roupas que nunca serão usadas. Abarrotar de quinquilharias inúteis o espaço já tão sem espaço do armário do antigo quarto de empregada, que se transformou em um depósito de coisas sem qualquer utilidade. É o consumismo exacerbado, paranoico, catártico, com medicação de tarja preta. É a abertura dos Shoppings! É o furdunço vital, o esbarrão necessário, o falatório ensurdecedor de vozes desconhecidas e crianças clamando por um brinquedo em promoção. Eu não podia perder a oportunidade de ser, quem sabe, o primeiro felizardo cliente a adentrar o Shopping Center mais badalado do subúrbio carioca. Seria triunfal! Chegaria facilmente às lágrimas com uma certa dose de exagero. Seria recebido por dezenas de lojistas e vendedores com a expressão de alegria, o ar de felicidade e aplausos. Muitos aplausos, como numa época distante em que uma famosa Rede de Supermercados recebia os seus clientes com aplausos e cafezinhos. Tempos modernos: aplausos, medir a temperatura e besuntar mãos e braços com álcool em gel. A minha imaginação carnavalesca me levava a acreditar que seríamos recebidos com banda de música, grupo de pagodes mascarados e passistas de Escola de Samba em seus trajes sumários requebrando com quadris desconcertados dando as boas vindas ao povo consumidor ávido para bater perna e deixar seus cartões de crédito e notas de reais nas mãos de lojistas quase falidos, em um meio ano perdido. Evitar-se-ia, contudo, os abraços, pois a aproximação e impulso carioca devem permanecer inalterado, ou seja: sem abraços e demonstração de carinho explícito. Porém, o simples fato de subir as escadas rolantes (todas devidamente higienizadas e entorpecidas com o etílico setenta) e poder olhar para trás, presenciando a vitória no alto do pódio do terceiro ou quarto piso do Shopping já era a certeza de que o mundo recomeçava a caminhar, que o ano, enfim, começava a partir deste onze de junho de dois mil e vinte. Sim, os calendários devem ser reformulados. O ano começava em onze de junho. Gêmeos e não mais capricórnio!
A retomada da minha vida estava diretamente relacionada à abertura dos Shoppings; com o vuco-vuco das filas, com as palavras que fariam parte da vida de todos os cidadãos cariocas a partir de então: lockdown, lives, flexibilização, Unidades de referência, fecha e abre, covid, corona, Hospital de Campanha, corrupção (sempre), desvios de dinheiro, superfaturamento, positivo e negativo, máscaras, respiradores, álcool em gel (setenta neles!), mercadorias que não chegam, mercados livres, isolamento social, pandemia, aulas on-line, home-office, aglomeração, distanciamento, um metro pra cá, um metro pra lá, crianças em casa, ônibus lotados e sucateados, Saúde Pública, infectologistas, debates intermináveis, curva em ascensão, desgovernos, hidróxido de cloroquina, Fio Cruz, âmbitos federal, estadual, municipal, pico que não chega, crise política, OMS, shoppings que reabrem, compras, compulsão. E eu, na porta do meu Shopping, aguardando impaciente pela abertura. E mais gente se aglomerando, falatórios, Guardas e Seguranças. Imprensa registrando os momentos decisivos, minha lista de compras, meu spray de álcool nas mãos, minha vida renascendo; as luzes acendendo, as portas abrindo, os carros entrando no estacionamento, distanciamento. Aqui pode, aqui não pode! As medidas de proteção. O Shopping surgindo como o sol nascente, entre as frestas, o êxtase, . A vida. O meu sorriso, as lágrimas que escorrem de rostos afoitos com a chegada do novo ano; os guardas com sinalizadores, mascarados, preparados; a batalha, a corrida meio “guanabarense” pelas lojas preferidas; o relógio explodindo os corações, as almas lavadas, o sinal da Igreja com as doze badaladas no meio do dia, o Shopping aberto. O meio dia!
Autor e Diretor Teatral. Professor de Teatro do Degase (RJ). Pedagogo. Pós graduado em Psicologia Jurídica. Presidente da Escola de Samba Mirim Inocentes da Caprichosos.
MEIO DIA LAVAREI MINHA ALMA
Dormi cedo para acordar bem disposto. A lista de compras já estava pronta desde a noite anterior. Nada poderia ficar esquecido: duas calças sociais, uma calça jeans, duas blusas de gola pólo, uma camisa social de mangas compridas e uma jaqueta que há tempos esperava para comprar. O smartphone já estava selecionado. Era aquele que tinha câmera frontal e fazia um “looping” ( a parte do looping era um exagero e nem sabia qual a finalidade de um celular fazer tamanha peripécia
circense.) Parcelado em três vezes no cartão de crédito. Já era o suficiente!
Na famosa Loja de Departamento, todas as promoções de chocolate (três por nove e noventa) e várias caixas de bombom. Vai que o relaxamento é interrompido feito um coito mal terminado? É preciso estar preparado para um revés.
O perfume anunciado exaustivamente na tevê para o Dia dos Namorados era perfeito para presenteá-la. Um vestido para ela? Se comprar o número atual levaria um grande “passa-fora”, porque quando enfim retornassem as atividades físicas, o número do manequim voltaria aos trinta e oito. Trinta e seis, talvez! Bem, melhor deixar o vestido na vitrine e quando ela pudesse me acompanhar, ela mesmo escolheria o modelo e o número que a fizesse ficar feliz. O relógio já tinha sido escolhido antes da pandemia. Faltava o dinheiro e, quando já se tinha o dinheiro, as Lojas entraram em luto por quase três meses. O pulso, pelo que eu ando observando todas as manhãs, não alterara neste período de isolamento social.
Eu queria ser o primeiro a chegar na porta do Shopping. Por isso, me programei para estar às oito e meia da manhã, mesmo sabendo que só abriria ao meio dia. Mas, e se todos pensassem como eu e resolvessem fazer uma vigília e formar com seus próprios corpos e roupas coloridas o tapete de areia que este ano não será feito pelos devotos religiosos? Melhor chegar às seis da manhã a enfrentar uma multidão às onze, onze e meia.
Decisão tomada, não fiz barulho para não acordá-la. Pela manhã, ela acorda muito indisposta, quase uma “TPM” matinal (que ela não me ouça fazendo esse comentário machista e demodé). Ela não costuma dar “bom dia” antes de ir ao banheiro, fazer suas necessidades matinais, tomar um banho, pentear os longos cabelos e surgir na sala esplendorosa, como se estivesse indo a uma sessão fotográfica para um catálogo de moda. Aí sim, começa o seu dia e, o seu humor, paulatinamente, vai surgindo com a luz do sol das dez horas da manhã. Eu, já sabendo como é todo esse processo, preparo o seu café com leite(novidade da quarentena em “home office”, pois até a primeira quinzena de março, seu café se resumia a um iogurte desnatado e uma maçã, e partia rumo ao escritório de advocacia onde trabalhava há três anos). Agora, na quarentena, om pão com queijo, o café com leite, geleia, suco de laranja, iogurte(a maçã foi esquecida!)e um copo médio com “Toddy” formavam o seu cardápio matinal neste período atípico. Daí, minha dúvida se compro ou não o vestido para presenteá-la no Dia que os corações batem mais fortes e o amor aparece grudadinho com ou sem quarentena.
Levantei, sem fazer barulho, para não incomodar seu sono, e fui tomar um banho. O relógio marcava cinco e quarenta da manhã. Nem quando eu precisava chegar mais cedo ao trabalho para abrir o escritório para o meu chefe, eu levantava neste horário. Se bem que chegar cedo ao escritório era motivo de não me estressar no trânsito e nem pegar engarrafamento na Linha Amarela. Senti uma falta descontrolada no início do isolamento social de não xingar dez palavrões durante a hora e meia de engarrafamento para chegar à Barra da Tijuca, vindo do Méier. Acordar cinco e quarenta, não. Chegar a esse horário, após as baladas e as comemorações da vitória do meu time, ah, isso sim. Muitas vezes. Estou sentindo uma imensa falta da muvuca do Maracanã. De deixar meu carro guardado dentro do estacionamento da UERJ, do buzinaço, da cerveja na esquina da Faculdade. Dos abraços. Das zoações. Cinco e quarenta da manhã para os preparativos de abertura do Shopping Center era de um ineditismo marcante. Uma boa causa! Motivo de me fazer acordar cedo e deixar toda mesa posta e um bilhetinho para ela: “Meu amor, feito com carinho. Me espere para o almoço. O Shopping reabre hoje, ao meio dia. De seu namorido”.
O mundo voltará a normalidade. Que saudades de rever vitrines de lojas, comprar supérfluos, entupir o armário com roupas que nunca serão usadas. Abarrotar de quinquilharias inúteis o espaço já tão sem espaço do armário do antigo quarto de empregada, que se transformou em um depósito de coisas sem qualquer utilidade. É o consumismo exacerbado, paranoico, catártico, com medicação de tarja preta. É a abertura dos Shoppings! É o furdunço vital, o esbarrão necessário, o falatório ensurdecedor de vozes desconhecidas e crianças clamando por um brinquedo em promoção. Eu não podia perder a oportunidade de ser, quem sabe, o primeiro felizardo cliente a adentrar o Shopping Center mais badalado do subúrbio carioca. Seria triunfal! Chegaria facilmente às lágrimas com uma certa dose de exagero. Seria recebido por dezenas de lojistas e vendedores com a expressão de alegria, o ar de felicidade e aplausos. Muitos aplausos, como numa época distante em que uma famosa Rede de Supermercados recebia os seus clientes com aplausos e cafezinhos. Tempos modernos: aplausos, medir a temperatura e besuntar mãos e braços com álcool em gel. A minha imaginação carnavalesca me levava a acreditar que seríamos recebidos com banda de música, grupo de pagodes mascarados e passistas de Escola de Samba em seus trajes sumários requebrando com quadris desconcertados dando as boas vindas ao povo consumidor ávido para bater perna e deixar seus cartões de crédito e notas de reais nas mãos de lojistas quase falidos, em um meio ano perdido. Evitar-se-ia, contudo, os abraços, pois a aproximação e impulso carioca devem permanecer inalterado, ou seja: sem abraços e demonstração de carinho explícito. Porém, o simples fato de subir as escadas rolantes (todas devidamente higienizadas e entorpecidas com o etílico setenta) e poder olhar para trás, presenciando a vitória no alto do pódio do terceiro ou quarto piso do Shopping já era a certeza de que o mundo recomeçava a caminhar, que o ano, enfim, começava a partir deste onze de junho de dois mil e vinte. Sim, os calendários devem ser reformulados. O ano começava em onze de junho. Gêmeos e não mais capricórnio!
A retomada da minha vida estava diretamente relacionada à abertura dos Shoppings; com o vuco-vuco das filas, com as palavras que fariam parte da vida de todos os cidadãos cariocas a partir de então: lockdown, lives, flexibilização, Unidades de referência, fecha e abre, covid, corona, Hospital de Campanha, corrupção (sempre), desvios de dinheiro, superfaturamento, positivo e negativo, máscaras, respiradores, álcool em gel (setenta neles!), mercadorias que não chegam, mercados livres, isolamento social, pandemia, aulas on-line, home-office, aglomeração, distanciamento, um metro pra cá, um metro pra lá, crianças em casa, ônibus lotados e sucateados, Saúde Pública, infectologistas, debates intermináveis, curva em ascensão, desgovernos, hidróxido de cloroquina, Fio Cruz, âmbitos federal, estadual, municipal, pico que não chega, crise política, OMS, shoppings que reabrem, compras, compulsão. E eu, na porta do meu Shopping, aguardando impaciente pela abertura. E mais gente se aglomerando, falatórios, Guardas e Seguranças. Imprensa registrando os momentos decisivos, minha lista de compras, meu spray de álcool nas mãos, minha vida renascendo; as luzes acendendo, as portas abrindo, os carros entrando no estacionamento, distanciamento. Aqui pode, aqui não pode! As medidas de proteção. O Shopping surgindo como o sol nascente, entre as frestas, o êxtase, . A vida. O meu sorriso, as lágrimas que escorrem de rostos afoitos com a chegada do novo ano; os guardas com sinalizadores, mascarados, preparados; a batalha, a corrida meio “guanabarense” pelas lojas preferidas; o relógio explodindo os corações, as almas lavadas, o sinal da Igreja com as doze badaladas no meio do dia, o Shopping aberto. O meio dia!
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