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KORKUSUZ - UM ENCONTRO INDESEJADO

HELMAN TELLES DOS SANTOS REIS
Nasceu em 27 de dezembro de 1961, na cidade de Rio de Janeiro, RJ. Divorciado. Graduado em Odontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina em 1984. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2003. Especialização em Ética e Filosofia Política, Gestão da Saúde Pública e Mestrado em Bioética.

KORKUSUZ - UM ENCONTRO INDESEJADO

Não lhe passava pela cabeça a ideia de colocar o pé naquela casa, enquanto aquele homem lá estivesse. Sequer podia imaginar a possibilidade de encontrá-lo.
Motivos... desculpas... apelos externos recorrentes em seus pensamentos... De si para si o que
importava eram seus próprios sentimentos... sua angústia. Que interessava, no fim das contas, as censuras, as análises, os conselhos e a palpitaria, em geral? Suava frio com a visão das próprias imagens que construía. Sim... porque, nunca o tendo visto, esse era tão real quanto os milhões de fótons que impressionavam sua retina aquela hora do dia.
A irritação ocular o fez abandonar um pouco a sua virtualidade para procurar, na realidade compartilhável, os óculos escuros, no porta luvas do veículo. Não demorou muito, remexendo o emaranhado de tralhas, para perceber que os esquecera na locadora. Já não bastasse aquele calor infernal, o ar condicionado não funcional, o barulho e a morosidade do trânsito e, agora, esse lapso... Num primeiro momento pensou: “que se dane” e, num maior distanciamento do carro à frente, trocou de primeira para segunda marcha acelerando um pouco mais para seguir viagem. A disperção, se boa ou não, durou pouco: logo uma voz grave e rouca chegou-lhe aos ouvidos. Soava-lhe tão nítida como se seu emissor estivesse sentado a seu lado. Esse enviado do além lhe cobrava responsabilidade e maior zelo por si. Era a própria figura de seu médico, materializada naquele contexto. O oftalmologista já havia repetido à exaustão as orientações que seu caso requeria. Mas de que importava, nesse momento, inserido naquela pragmática imobilidade se permitir à uma audiência transcendente? Se era para haver algum gasto energético em exercícios cognitivos, seria melhor colocá-lo à serviço de antecipar alguma defesa diante do inevitável.
A velocidade do carro em sua dianteira se acelera um pouco mais... Consegue, então, mudar para a terceira marcha e proporcionar um incremento ao deslocamento do carro. O ar que adentra, em maior volume, pela janela, lhe amaina um pouco o desconforto. Nesse alívio repentino, os pensamentos buscam por alguma organização. Censura-se por esse nervosismo, que classifica como pueril, ao mesmo tempo que desculpa-se pela angústia, dado as informações que possuía. Afinal de contas, não era só uma questão de palavras certas, havia também a barreira do idioma e diferenças culturais ocultas em densa névoa... Lágrimas lhe escorriam pelas faces... não por choro, mas pela luz intensa do sol, ao meio dia, fustigando lhes os olhos extremamente sensibilizados. Sabia que o homem  não frequentava aquela casa já há alguns anos, mas naquele contexto isso era irrelevante. Ele e somente ele poderia pôr tudo a perder...
A ardência nos olhos era infernal... afinal foram mais de dezessete horas de viagem até o destino e na última conexão não conseguiu, na farmácia do aeroporto de Frankfurt, fazer com que entendessem, em inglês, a fórmula do seu medicamento. Afinal, essas complexidades químicas são quase impossíveis de serem pronunciadas em qualquer idioma e o alemão não era o seu forte... Ahhh... maldito cloro! Interrompe as divagações e solta um palavrão, como se estivesse no próprio país. Foi por pouco... O carro à frente havia freado bruscamente e, num piscar de olhos, metros se reduziram à milímetros... Culpou a híbrida conjunção do Ocidente e Oriente por sua distração, como se o caos nos trânsitos do mundo tivessem muita diferença. Enfim, seus sentidos, humor e concentração já se resumiam em um subproduto tóxico, do cansaço, do contragosto, da tensão e de alguma dor. Medo? Não... não era o caso. O que conspirava contra a sua respiração e ritmo cardíaco não era temor, tampouco sua condição física, mas sim a tortura psíquica, pois fazer algo contrariado é também um castigo à alma. Olhou para o relógio. O atraso era enorme e ainda que pontualidade não fosse um dos pilares dos costumes locais, ele próprio não lidava bem com essa falta. Havia programado tudo meticulosamente, antes de partir. Estava tudo tão em conformidade com o cronograma que, no dia anterior ao voo, após o expediente, se permitiu ao luxo de umas braçadas relaxantes e esse foi o seu pecado...
O trânsito, agora, havia parado completamente. Ainda não havia lhe ocorrido ligar o rádio, tão absorto estava em seus pensamentos. O fez... Gostava das músicas do país... naquele momento, pareceram lhe trazer alguma paz e nostalgia... Lembrou-se de quando a conhecera, no Congrès International d’Épidémiologie, em Paris. Ele, um especialista em Medicina Tropical e ela uma idealista e dedicada profissional da organização Médicos sem Fronteiras... Ela se sentia realizada em seu trabalho mas, por outro lado, nutria algum sentimento de culpa por suas opções de vida... afinal, isso resultou no divórcio de seus pais, incluindo muita violência psicológica e mesmo física... Não se condenava pela separação em si, mas pela violência física que a mãe sofrera, vindo perder, parcialmente a audição... Esse tipo de informação lhe revoltava! Ele era totalmente avesso recorrer à violência como argumento. Costumes... pensou ele com desdém. Apesar das muitas culturas que conhecera, as observava de um ponto de vista crítico e não nutria muita simpatia por ações pautadas em crenças e emocionalismos. Estava prestes a ter um embate, onde teria que contrapor argumentos lógicos à costumes e emoções.
Enfim, após uma maratona sobre rodas, se aproximava do Café, onde ela, certamente já o esperava... Tinha muito boas memórias do Bodrum Manti & Cafe, além dos chás ou dos bolos e tortas, pelas quais sua fome já reclamava... Estacionou o carro e olhou-se, por um momento, no espelho... se via com uma aparência horrível... não se reconhecia como aquele que tinha estado com ela há poucos dias atrás... o cabelo em desalinho... os olhos vermelhos... mas nada havia a fazer... Já conseguia vê-la sentada à mesa de preferência, com visão para o estreito, onde adorava ver o trânsito dos barcos, suas sirenes, as gaivotas e o belíssimo céu azul, que combinava com a cor dos seus olhos... Apesar de todos os revezes, ele estava satisfeito, por estar próximo a iniciar uma nova e importante etapa na vida de ambos... Aproximou-se... ela estava trajando uma saia branca, sandálias e blusa vermelhas que realçavam o tom de seus cabelos... Ao chegar mais perto, ela o viu e levantou-se com um sorriso triste... Ele acercou-se e, após um breve beijo e rápido abraço, sentaram-se, com ele tomando-lhe as mãos... Observou que os olhos dela estavam tão vermelhos quanto os seus, ainda que por outras razões... Aguardou que ela começasse a falar... Em alguns minutos, saberia que muito de sua tensão e angústia perderiam a razão de ser, apesar da tristeza envolvida.
Foi um enfarto... o que transformou angústia em tristeza e tristeza em alívio. O rancor, a arrogância e o preconceito pesaram demais ao coração daquele homem que um dia foi pai... O evento fatídico ainda que os desobrigasse de sua autorização, por peso de sentimentos, talvez atávicos e desejos do que poderia ter sido, alimentavam o clima de consternação, ainda mais em uma cultura plena de simbolismos, socialmente difíceis de serem abdicados, principalmente no caso deles que já haviam transposto diversas barreiras dos costumes... O momento, portanto, requeria ser vivenciado com calma, equilíbrio, simplicidade e discrição... Por mais que que ela tivesse ressentimentos em relação aquele homem, seu pai, ainda havia mantido alguma esperança de reconciliação ou, ao menos, uma relação menos desprezível... quem sabe se culpasse por tê-lo frustrado tanto em seus anseios e projetos conservadores, desonrando as tradições de sua família e religião... sim, porque num país majoritariamente mulçumano ela se impôs como agnóstica... Mas o que havia de egocêntrico em apenas procurar ser, ao invés de obedecer aos ditames de outrem?
O garçom depositou, gentilmente sobre a mesa, os pratos com bolo e os copos com chá türk çayi... O casal se entreolhou e soltaram uma risada mais descontraída, pois pensaram o mesmo: a cor do chá parecia refletir, lacrimejante, a cor dos seus olhos avermelhados. Já extremamente aliviado, pensou ele, sem deixar transparecer, que diante de um pedido fútil para um consentimento de autoridade fictícia, a solução não foi tão ruim. Afinal, o homem colheu aquilo que plantou e para o momento, bem como para dias vindouros, não haveria como intimidar mais ninguém diretamente ligado a eles ou prejudicar sua relação... Fingiu alguma consternação em relação à melancolia que impregnara os momentos iniciais do encontro e já se amainava...
Pediram a conta... e, com os dedos entrelaçados, foram sentar-se em um banco de madeira, no passeio à beira do Bósforo, para ver o pôr do sol emoldurando a silhueta da 15 Temmuz Sehitler Köprüsü...

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