ANGÉLICA MANFROI
Escrevo por inspiração. Gosto quando escrevo. Poder me expressar através das letras me traz felicidade. Participei da antologia “Poemas no ônibus”, em Porto Alegre, no final do século passado e, em 2019, tive dois poemas meus publicados no livro “Pulsações”, em comemoração aos quinze anos da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID), onde sou professora de Medicina. Também sou mãe da Beatriz e da Letícia.
O CASO DA MAÇANETA
E, então eis eu, ali, sozinha em casa, como há muito não ficava, em um domingo ensolarado de isolamento social. Olho para as velhas maçanetas das portas e decido que já passou do tempo de serem trocadas. Domingo, eu, ali, sozinha, em casa, já tinha lido algumas páginas do livro da vez,
acredito que é fácil trocar as maçanetas e que eu mesma irei trocá-las.
Segura de mim com o sucesso na primeira troca, faço a maior ginástica para tentar tirar o pino da segunda maçaneta. Mas que droga, claro que foi colado. Não sai! Tudo bem, restam mais três portas. Esta pode esperar.
Estou no meu quarto, mexendo na porta, tirando a maçaneta velha, cada vez mais com a sensação de que chamar alguém para trocar maçanetas é para os fracos. Tirei a tal e a coloquei para fora do quarto, no corredor, para já ir juntando o lixo todo por ali. Nem me lembro como a porta fechou. A PORTA FECHOU?! Só vi que, ao perceber que estava fechada, veio aquele pânico. Instantaneamente, meu estômago roncou, avisando que já passara da hora do almoço e me deixando com aquela até então pouco conhecida sensação de “ vou morrer aqui”. Você deve estar pensando: simples, pega o celular e chama o porteiro ou alguém. Acontece que o celular ficara para fora do quarto, em um daqueles meus rompantes policialescos de fiscalizar o uso ininterrupto deste aparelho. Afinal, para que eu precisaria do celular, com as duas mãos ocupadas, trocando maçanetas? Droga! Eu precisava. O telefone fixo! Ufa! Estou salva! Sim, mas e quem disse que eu me lembrava do número de alguém? Lembrava! Meus pais. Mas em Porto Alegre, não poderia incomodá-los com isso. Gustavo. Uhu! Salvação! Liguei para ele. Chamou, chamou e a ligação caiu. Obviamente, ele sequer reconheceu o número que lhe chamava em um domingo no horário do meio dia. Afinal, quem usa telefonar e, ainda por cima, do telefone fixo? Na certa, pensaria que era engano ou um telemarketing qualquer. E quem disse que eu me lembrava corretamente do número dele?
Pois então, eu só conseguia me lembrar do Dyonélio Machado com o seu conto “Os ratos”, em que ele passa por uma situação de se ver trancado, também, mas para o lado de fora; porém, seminu.
Olhei para a janela, pensando em chamar a atenção dos vizinhos do prédio em frente. Quem sabe chamariam o porteiro, se me vissem gesticulando, ou se eu fizesse um cartaz pedindo ajuda? Imaginei a vizinha me olhando acenar com todas as minhas forças e pensando: será que é alguém conhecido? Doce ilusão. Prédio em frente? Maldita mania eremita de procurar por privacidade e vista bonita. Zero vizinhos que poderiam detectar meus acenos.
E, então eis que me encontro ali, sozinha em casa, como há muito não ficava, em um domingo ensolarado de isolamento social, trancada em meu quarto, ao trocar as maçanetas. Ridículo. Raiva desta pandemia. RAIVA! Ódio mortal do isolamento social por ela provocado. ÓDIO! Afinal, quando na minha vida sem isso de covid-19, eu estaria em um domingo de sol, sozinha em casa trocando maçanetas de portas? E esta altura, meu estômago já estava se auto digerindo, eu suava frio, sentia sede e não conseguia me lembrar de mais nenhum número de telefone para pedir socorro. Tentei expirar e inspirar profundamente. Afinal, é preciso que se mantenha a calma em situações como estas.
Repensei as possibilidades de salvação: telefone, sem chances; vizinhos em frente idem. Gritar feito louca para os vizinhos de cima e de baixo seria uma alternativa. Mas que vergonha, eu, lá, gritando para o nada, esperando que alguém fosse me ouvir e, além do mais, compreender o que se passava comigo e, enfim chamar ajuda. Pensei nos lençóis. Sim, sim, sim! Os lençóis! Eu poderia fazer uma corda com eles e, lançá-los pela janela até o andar debaixo, com um bilhete de pedido de socorro fixado em sua ponta. Mas, sei lá, talvez esta possibilidade de pedido de socorro estivesse junto com a da gritaria, em um momento de total desespero. Já sei! Martelar! Martelar e martelar muito e forte. O martelo estava ali, comigo! Quem suportaria, em um domingo ensolarado de isolamento social, uma vizinha martelando, enlouquecida e ininterruptamente? Imagino que, depois de tentar se manter calmo e educado, o que poderia demorar um bom longo tempo, o vizinho acionaria o porteiro, que tocaria enlouquecida e ininterruptamente o interfone e, sem que eu atendesse, pensariam que o barulho fosse proveniente de outro apartamento, desistindo do meu. E, assim, já teria se passado tempo suficiente para que eu me cansasse de bater o martelo e já estivesse caquética, quase em inanição. Sem chances pensar em martelar, portanto.
Já não encontrava mais alternativas para conseguir ajuda. Comecei a pensar que eu realmente estava em apuros. Meu coração acelerou ainda mais, minha respiração ficou ofegante, minha boca seca e minhas mãos úmidas. Nem chorar adiantava. Droga!
Decidi ir ao banheiro, passar água no rosto, lavar as mãos, me olhar no espelho e me xingar pela burrice de deixar a porta fechar, de ter deixado o celular do lado de fora, e eis que tenho aquela sensação de miragem em meio ao deserto, naquele momento em que não parecia mais haver saída. Minha miragem estava ali, na porta do banheiro! A maçaneta da porta, ainda imaculada, com seu brilho fosco, pronta para me ajudar a sair daquela encrenca. Por sorte, eu ainda não tinha mexido nela. Caso contrário, estaria, também, no corredor, do lado de fora do quarto. Arranquei-a com todo o desespero e amor por ela existir. Nunca tirei uma maçaneta de forma tão rápida. Coloquei-a na porta do quarto e, sem dificuldades, a porta se abriu.
Peguei o celular, imaginando que pudesse haver mensagem do Gustavo, perguntando se eu havia telefonado para ele, ou, até mesmo, poderia ter alguma ligação dele, retornando a minha. Mas desconfio que obviamente ele, sequer, reconheceu o número fixo que lhe chamara, no horário de almoço, em um domingo ensolarado de isolamento social. Já pensei que, caso ele me pergunte, mais tarde, se eu lhe telefonei, vou desconversar, dizer que bati no telefone “assim, sem querer”. Afinal, contar o ocorrido depois de tudo, seria passar a maior vergonha. Melhor deixar quieto.
Escrevo por inspiração. Gosto quando escrevo. Poder me expressar através das letras me traz felicidade. Participei da antologia “Poemas no ônibus”, em Porto Alegre, no final do século passado e, em 2019, tive dois poemas meus publicados no livro “Pulsações”, em comemoração aos quinze anos da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID), onde sou professora de Medicina. Também sou mãe da Beatriz e da Letícia.
O CASO DA MAÇANETA
E, então eis eu, ali, sozinha em casa, como há muito não ficava, em um domingo ensolarado de isolamento social. Olho para as velhas maçanetas das portas e decido que já passou do tempo de serem trocadas. Domingo, eu, ali, sozinha, em casa, já tinha lido algumas páginas do livro da vez,
acredito que é fácil trocar as maçanetas e que eu mesma irei trocá-las.
Segura de mim com o sucesso na primeira troca, faço a maior ginástica para tentar tirar o pino da segunda maçaneta. Mas que droga, claro que foi colado. Não sai! Tudo bem, restam mais três portas. Esta pode esperar.
Estou no meu quarto, mexendo na porta, tirando a maçaneta velha, cada vez mais com a sensação de que chamar alguém para trocar maçanetas é para os fracos. Tirei a tal e a coloquei para fora do quarto, no corredor, para já ir juntando o lixo todo por ali. Nem me lembro como a porta fechou. A PORTA FECHOU?! Só vi que, ao perceber que estava fechada, veio aquele pânico. Instantaneamente, meu estômago roncou, avisando que já passara da hora do almoço e me deixando com aquela até então pouco conhecida sensação de “ vou morrer aqui”. Você deve estar pensando: simples, pega o celular e chama o porteiro ou alguém. Acontece que o celular ficara para fora do quarto, em um daqueles meus rompantes policialescos de fiscalizar o uso ininterrupto deste aparelho. Afinal, para que eu precisaria do celular, com as duas mãos ocupadas, trocando maçanetas? Droga! Eu precisava. O telefone fixo! Ufa! Estou salva! Sim, mas e quem disse que eu me lembrava do número de alguém? Lembrava! Meus pais. Mas em Porto Alegre, não poderia incomodá-los com isso. Gustavo. Uhu! Salvação! Liguei para ele. Chamou, chamou e a ligação caiu. Obviamente, ele sequer reconheceu o número que lhe chamava em um domingo no horário do meio dia. Afinal, quem usa telefonar e, ainda por cima, do telefone fixo? Na certa, pensaria que era engano ou um telemarketing qualquer. E quem disse que eu me lembrava corretamente do número dele?
Pois então, eu só conseguia me lembrar do Dyonélio Machado com o seu conto “Os ratos”, em que ele passa por uma situação de se ver trancado, também, mas para o lado de fora; porém, seminu.
Olhei para a janela, pensando em chamar a atenção dos vizinhos do prédio em frente. Quem sabe chamariam o porteiro, se me vissem gesticulando, ou se eu fizesse um cartaz pedindo ajuda? Imaginei a vizinha me olhando acenar com todas as minhas forças e pensando: será que é alguém conhecido? Doce ilusão. Prédio em frente? Maldita mania eremita de procurar por privacidade e vista bonita. Zero vizinhos que poderiam detectar meus acenos.
E, então eis que me encontro ali, sozinha em casa, como há muito não ficava, em um domingo ensolarado de isolamento social, trancada em meu quarto, ao trocar as maçanetas. Ridículo. Raiva desta pandemia. RAIVA! Ódio mortal do isolamento social por ela provocado. ÓDIO! Afinal, quando na minha vida sem isso de covid-19, eu estaria em um domingo de sol, sozinha em casa trocando maçanetas de portas? E esta altura, meu estômago já estava se auto digerindo, eu suava frio, sentia sede e não conseguia me lembrar de mais nenhum número de telefone para pedir socorro. Tentei expirar e inspirar profundamente. Afinal, é preciso que se mantenha a calma em situações como estas.
Repensei as possibilidades de salvação: telefone, sem chances; vizinhos em frente idem. Gritar feito louca para os vizinhos de cima e de baixo seria uma alternativa. Mas que vergonha, eu, lá, gritando para o nada, esperando que alguém fosse me ouvir e, além do mais, compreender o que se passava comigo e, enfim chamar ajuda. Pensei nos lençóis. Sim, sim, sim! Os lençóis! Eu poderia fazer uma corda com eles e, lançá-los pela janela até o andar debaixo, com um bilhete de pedido de socorro fixado em sua ponta. Mas, sei lá, talvez esta possibilidade de pedido de socorro estivesse junto com a da gritaria, em um momento de total desespero. Já sei! Martelar! Martelar e martelar muito e forte. O martelo estava ali, comigo! Quem suportaria, em um domingo ensolarado de isolamento social, uma vizinha martelando, enlouquecida e ininterruptamente? Imagino que, depois de tentar se manter calmo e educado, o que poderia demorar um bom longo tempo, o vizinho acionaria o porteiro, que tocaria enlouquecida e ininterruptamente o interfone e, sem que eu atendesse, pensariam que o barulho fosse proveniente de outro apartamento, desistindo do meu. E, assim, já teria se passado tempo suficiente para que eu me cansasse de bater o martelo e já estivesse caquética, quase em inanição. Sem chances pensar em martelar, portanto.
Já não encontrava mais alternativas para conseguir ajuda. Comecei a pensar que eu realmente estava em apuros. Meu coração acelerou ainda mais, minha respiração ficou ofegante, minha boca seca e minhas mãos úmidas. Nem chorar adiantava. Droga!
Decidi ir ao banheiro, passar água no rosto, lavar as mãos, me olhar no espelho e me xingar pela burrice de deixar a porta fechar, de ter deixado o celular do lado de fora, e eis que tenho aquela sensação de miragem em meio ao deserto, naquele momento em que não parecia mais haver saída. Minha miragem estava ali, na porta do banheiro! A maçaneta da porta, ainda imaculada, com seu brilho fosco, pronta para me ajudar a sair daquela encrenca. Por sorte, eu ainda não tinha mexido nela. Caso contrário, estaria, também, no corredor, do lado de fora do quarto. Arranquei-a com todo o desespero e amor por ela existir. Nunca tirei uma maçaneta de forma tão rápida. Coloquei-a na porta do quarto e, sem dificuldades, a porta se abriu.
Peguei o celular, imaginando que pudesse haver mensagem do Gustavo, perguntando se eu havia telefonado para ele, ou, até mesmo, poderia ter alguma ligação dele, retornando a minha. Mas desconfio que obviamente ele, sequer, reconheceu o número fixo que lhe chamara, no horário de almoço, em um domingo ensolarado de isolamento social. Já pensei que, caso ele me pergunte, mais tarde, se eu lhe telefonei, vou desconversar, dizer que bati no telefone “assim, sem querer”. Afinal, contar o ocorrido depois de tudo, seria passar a maior vergonha. Melhor deixar quieto.
Angélica, estou acórdando e li teu "Caso da Maçaneta".
ResponderExcluirComo sempre muito bem escrito. Título que nos chama a ler pela curiosidade.
Que diabo, coisa inusitada para fazer num domingo ensolarado.
Enfim, o caso da Maçaneta nos coloca de coadjuvantes e inverte os papéis, a maçaneta nos pega e nos faz ler até o fim aflitos e querendo achar uma saída.
Estarias reabrindo a porta da Para a escritora que ha em ti recomeçar?
Dá gosto te ler, não para mais, querida.