Total de visualização de páginas

SERENA LOUCURA

DANIELA AP. DE SOUZA
Apresentação pessoal: Professora, tenho 44 anos,  já participei de outros concursos literários, gosto de escrever e ler gêneros diversos. Acredito na leitura como forma de libertação.

SERENA LOUCURA

A casa parecia abandonada, histórias circulavam pelo bairro, a moradora da casa era louca abandonada à própria sorte, uma bruxa para as crianças, na verdade era uma pessoa marcada pela dor que segundo dizem a fez enlouquecer e que agora em tempos tão difíceis a loucura teria aumentado.
Flora morava em frente a essa casa, mas estava presa em sua rotina, mal percebia aquela casa velha morrendo no bairro, agora em casa por conta da pandemia e sem emprego, passava os dias vagando pelos cômodos, regando as flores do quintal, ouvindo músicas antigas e olhando os buracos na parede.
Domingo, estava à frente de sua casa fumando e observando, o bairro já não era o mesmo, nos fins de semana já não havia a gritaria das crianças, o vai vem dos carros, a música alta deu lugar ao silêncio, agora era possível ouvir o canto dos pássaros e ver as flores que cresciam na calçada.
Flora viu um menino que timidamente jogava bola sozinho na calçada, de repente com força bateu na bola que fez espatifar o último vidro intacto daquela casa tão temida por eles. 
O menino mirrado com sua máscara estampada com a bandeira do time preferido olhou para ela sentada ali na soleira da porta, seu olhar dizia tudo, havia perdido sua bola preferida, logo pode-se ver pequenas gotas correndo pela sua face rosada. 
Flora apagou o cigarro com a ponta do sapato, respirou fundo e sob o olhar apavorado da criança e olhos de desconfiança e reprovação dos adultos que espiavam pelas janelas de suas casas, sem dizer uma palavra atravessou a rua, abriu o portão velho que rangeu dolorosamente e entrou.
A porta estava aberta, entrou em uma sala escura, empoeirada, a bola estava junto aos cacos de vidro, uma doce melodia a conduziu até o quarto dos fundos onde encontrou uma mulher que dançava com um espelho nas mãos.
Quis se desculpar pela invasão, a mulher rapidamente a puxou pelo braço e a conduziu na dança, havia flores em seus cabelos brancos, seu olhar era profundo e distante, dançava gingando para frente e para trás, com uma das mãos conduzia Flora, com a outra segurava o espelho até que ele escorregou e quebrou-se, a mulher ficou ali ajoelhada pegando desesperadamente os cacos que se formaram no chão.
Ainda um pouco tonta, Flora olhou ao seu redor e viu que estava no quarto mais belo que já havia visto, todo branco com cortinas de renda, o sol aquecia o lugar, um raio de luz acariciou seu rosto. Havia uma cômoda com várias fotos espalhadas. Só depois se deu conta de que havia sangue pelo chão e a mulher agora gritava e chorava, tentou acalmá-la, mas foi em vão, assustada apanhou a bola e saiu correndo.
Depois desse dia, a mulher sempre aparecia em uma das janelas quebradas, o olhar profundo mirava sempre Flora, parecia apenas um busto esquelético atrás da cortina empoeirada.
Flora levava uma vida solitária, havia se separado há alguns anos, não tivera filhos, ás vezes um imenso vazio lhe fazia sentir frio, seus olhos eram opacos, sua pele negra havia sido desenhada há pouco tempo por pequenas linhas, sua boca larga e em tom marrom escuro deixou há tempos de sorrir, suas mãos calejadas pelo trabalho, as pontas dos dedos amareladas.
Não gostava do anoitecer, todos os dias quando via a lua cair e a escuridão tomar conta de todo céu, sentia tremores, lembrava das noites em que quando casada, as brigas e as discussões por vezes desmedidas lhe rendiam marcas, dores, feridas. Eram noites de tormenta sem sono. Ela virava e revirava na cama, um pequeno facho de luz prata irradiava o quarto.
Lembrou de uma noite em que deitada na cama mirava a nuca do marido e por um momento sentiu raiva dele que dormia serenamente, começou a acompanhar a respiração dele, observava os movimentos de sobe e desce das cobertas, percebeu que os cabelos dele estavam ficando grisalhos, estava deitada ao lado de um estranho.
Antes de tudo acontecer, toda a tarde ficava na janela de frente a rua, acendia um cigarro, observava o movimento da rua o vai e vem dos carros, um casal de enamorados, as fuxiqueiras a conversarem sobre a vida alheia, as crianças sempre jogando bola. Quem a olhasse ali parada podia achar que ela estava satisfeita com a sua vida que nada podia lhe devorar a alma, mas sua expressão de tristeza que ás vezes sem querer deixava transparecer, demonstrava que não era tão forte diante das tempestades do cotidiano, afinal sua carne havia sido mastigada por todas as bocas do mundo.
Era uma tarde quente, chegou do supermercado, fez o jantar e depois lentamente levantou-se, ligou o rádio e começou a lavar a pouca louça do jantar, dirigiu-se até a janela da frente como sempre fazia, a rua vazia, o calor torpe tirou sua vontade de fumar, logo toda casa foi tomada por silêncio e escuridão.
De madrugada Flora acordou, levantou-se para tomar um copo de água pois sentia a garganta seca, o calor percorria seu corpo, seu coração ardia começou a sentir um leve formigamento nos lábios, trôpega abriu a janela para respirar melhor, viu que do outro lado da rua na casa velha lá estava a sorrir a figura esquelética que lhe chamava com o olhar.
Ainda de camisola, atravessou a rua, entrou novamente na casa, lá estava àquela mulher dançando com o espelho quebrado em uma das mãos, dessa vez não esperou ser convidada e também dançou, ambas riam, entregou-lhe um espelho novo, enquanto a outra se pôs a dançar encantada pela nova visão agora não mais partida. Flora olhava novamente os retratos na cômoda; uma praia deserta, uma casa de janelas sorridentes com um casal de mãos unidas, seria aquela mulher que ali dançava de serena loucura a girar, de braços abertos como uma janela para que o sol pudesse irradiá-la?
Depois desse dia passava as tardes naquela casa, apenas ficavam dançando e muitas vezes sem dizer uma só palavra se entreolhavam e riam descompassadamente.
Numa tarde, final de verão, Flora viu aquele ser tão delicado partir, seus olhos como cortina cerravam à medida que o sol da tarde abandonava o cômodo que foi ficando escuro, aos poucos o subir e descer da longa camisola azul surrada foi parando ela ainda olhou pela última vez no espelho, sorriu.
Na manhã seguinte agora em sua casa, lá estava Flora a dançar com um espelho nas mãos, girando para frente e para trás, o bairro ficou longe, longe, para frente e para trás, a girar e a girar... 

Um comentário:

  1. Primeiro meus cumprimentos ao editor pela iniciativa. Quanto ao Serena loucura", é tocante , parabéns Daniela.

    ResponderExcluir

Comente, pergunte, deixe sua opinião. Obrigado!